sexta-feira

Eutanásia


Por que entendo que é imoral? Por que não se deve legalizar?

Sempre que se põe a questão da eutanásia, ela aparece não só ligada, mas dependente da questão mais funda do valor e sentido da vida, do valor e sentido que o sofrimento possa ter. Ora, no contexto cultural actual, parece estar aberta a porta da relativização do valor da vida, em muitas e variadas circunstâncias, bem como da dificuldade de dar sentido ao sofrimento. Pelo contrário, parece que se exige o direito a não sofrer. E contudo, o panorama presente é o de uma sociedade oprimida e bipolar, saltando da angústia para o divertimento. Daí, por certo, da escola à política, ressalta a violência e a depressão.

A eutanásia, a sua defesa ou apenas a sua admissão, é um típico caso de “um mal com aparência de bem”, um veneno bem embrulhado. A “morte a pedido” para acabar com o sofrimento ou para libertar “vidas sem qualidade” resolveria (parece!) muitos casos de “extrema” solidão, de doença “degradante” e irreversível, de deficiência “sem sentido” (dizem!), de “ausência” de qualidade e vida. Parece. A eutanásia resolveria também a questão da melhor distribuição de assistência médica, dos recursos económicos e do tempo gasto e desgastante com quem (parece!) já não produz, nem sequer afectos, podendo com mais “justiça” tudo ser canalizado para quem oferece mais expectativas de sucesso. Parece! Por fim, a eutanásia seria (assim parece a alguns) a expressão de uma maior compaixão e compreensão, da parte da família e de quem trata, para com tanto sofrimento. Pode parecer que sim.

Mas será esse o caminho mais humano, de maior solidariedade, de maior respeito pelos mais fracos e pela sua liberdade, de maior serviço à sua dignidade e maior testemunho de gratuidade e partilha, que deixariam o mundo menos individualista, menos superficial e menos instalado na sua “felicidade” economicista?… O sofrimento comove-me (move-me) ou apenas me incomoda?
Aliás, que é a qualidade de vida? Saúde, dinheiro, relação ou ser amado? Quando alguém muito sofrido pede a morte ou grita “quero morrer”, que estará verdadeiramente a dizer: que me matem ou, antes, não quero este abandono, este fazerem-me sentir inútil e pesado? No fundo diz: não quero “esta morte”, quero viver, sentir-me acompanhado, compreendido… É que quando se pede a eutanásia é porque já a pessoa se sente “eutanasiada” psicológica e socialmente.

Os dois filmes que nos últimos 4 anos trouxeram este tema para a discussão pública tratam de casos muito específicos que não permitem generalizar a eutanásia, mas que vale a pena examinar. Em “Mar Adentro”, Ramon San Pedro, paraplégico com toda a assistência, exigindo o direito à eutanásia e que, por fim, consegue um suicídio assistido, revela a sua convicção obstinada de que o mínimo de qualidade de vida está na relação sexual! Ora, sem isso não há vida que valha? Já o treinador de boxe que, em “Million Dollar Baby”, penosamente mata a sua discípula, fá-lo por compaixão. Entende-se a sua dor e perplexidade. Mas, “a morte por compaixão é a morte da compaixão” (Daniel Serrão).

As pessoas limitadas, deficientes, são, tantas vezes, os “anjos”, os despertadores que nos acordam do egoísmo para a vida real!

Que fazer? Se o caminho não é o de “dar a morte”, também não é o de “agarrar-se” acriticamente à vida física. E ainda menos ao seu prolongamento obsessivo (distanásia). Trata-se de “estar com” e ajudar a “morrer bem”. Isto é: cuidar do enquadramento humano, psicológico, social e espiritual da pessoa; que possa fazer as suas decisões e despedidas, uma correcta terapia da dor, respeitando que não queira sujeitar-se a todos os tratamentos, sabendo que alguns até abreviam a vida física, mas permitem mais relação e consciência. Enfim, já que a morte é inevitável para todos, que seja vivida com a maior dignidade pessoal possível. E é em todo este conjunto de acções e relações que está o grande desafio que, hoje, tem o nome de Cuidados Paliativos.

Última nota quanto à legalização: mesmo quando, em consciência, se admite que a pessoa possa “ter direito” a não querer viver e até a pedir a morte, isso não implica que haja alguém que fica com o dever (ou o direito!) de a matar. Certamente, não.

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Sugestões Bibliográficas:
• A MORTE ÍNTIMA - Marie de Hennezel, Ideias e Letras
• O OLHAR E O VER, À PROCURA DO LADO CONSTRUTIVO DA VIDA E DO POR DENTRO DE TODAS AS COISAS - Vasco Pinto de Magalhães, 2007
• LA EUTANASIA Y EL ARTE DE MORIR - Javier Gafo (ed.), Comillas, Madrid 1990



P. Vasco Pinto de Magalhães sj

(sj = Jesuíta)

Retirado de www.essejota.net

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